segunda-feira, 15 de abril de 2013

Pastel, valores e liberdade


Conversa séria.

A desculpa foi o pastel. Fazia tempo que não dava certo o tal encontro.
Sentamos à mesa que ficava na calçada (estava um frio de rachar!) e ocupamos nosso tempo falando de vida (e não da vida, o que é bem diferente...).
Pastel ficando para depois, falamos sobre nossos “velhos tempos” e sobre nossos “desafios de hoje”. Sobre como é difícil seguir sem cair. Sobre injustiça e sobre paixão. Sobre como é complicado ser simplesmente feliz.
O mais engraçado foi quando nos olhamos de repente, e juntos sentimos que hoje é complicado para qualquer um.
Para nós, filhos de pais tradicionais, inflexíveis, que às vezes bebiam um pouquinho da água da repressão para manter a ordem, é complicado. Para nossos amigos livres, rebeldes e avessos às regras, filhos de pais liberais, é complicado. Hoje, todo mundo, de ambas as tribos, vive amores, dissabores, buscas e dores.
E a aura em comum que sustentava nossa sintonia perfeita perguntou finalmente: afinal, de quem é a culpa por estarmos em um momento tão sem rumo, cheio de conflitos, dúvidas e dor, na nossa geração? A falta de liberdade ou a de responsabilidade?
Tive uma infância lotada de valores. LOTADA mesmo, tão lotada que não conseguia sequer andar sem esbarrar em algum. Eles me estruturavam e davam a sensação de proteção e acerto, mas, com o passar do tempo e da vida, percebi que me limitavam, me prendiam, me sufocavam, e escolhi conquistar minha liberdade com a maturidade, mesmo que através da dor.

Ao meu lado, entretanto, sempre houve amigos dotados da mesma liberdade tão desconhecida para mim. Liberdade de pensar, de agir, de expressar. Uma ausência total de limitações. Estas pessoas me incomodavam. Durante grande parte da minha vida eu alternei entre momentos de fúria pelas inconseqüências que geravam a eles e aos outros, e momentos de pura inveja por sentir que para eles tudo era possível, e toda experiência, permitida. Achava-os egoístas, imaturos, irresponsáveis, desrespeitosos. E eles tinham preconceito de mim. Achavam-me presa, medrosa, sem expressão e sem graça. Uma chata.
Eu sempre senti esta separação. Eram os “dois lados da força”.
Mas ali, enquanto enrolava para escolher o pastel, um pedaço de magia aconteceu. Pela primeira vez, senti no fundo do coração, uma igualdade perfeita entre todos nós. E foi bom.
É tão obvio! Somos todos vítimas de um mundo dual e caótico que sempre aceita um lado para rejeitar outro, criando realidades parciais e duras, gerando preconceito, separatismo e dor.
Eu tinha puro preconceito dos meus amigos livres. E eles de mim. Quem ganhou e quem perdeu? Quem está melhor ou pior? Quem contribui mais para um “mundo melhor”?  Pura mania de comparação...
A resposta é simples: ninguém. Tive valores, mas sem liberdade. Outros tiveram liberdade, mas sem valor algum que a estruturasse. Troca de seis por meia dúzia...
Alguns se divertiram mais, ousaram mais, mas o vazio dentro de suas almas gritava cada vez mais por algo que fizesse sentido, algo que os guiasse através de tantas opções permitidas. Outros seguiam regras e dogmas respeitados de maneira sagrada, e pensavam tanto para fazer o certo, que realizaram metade do que queriam, senão menos, e se frustraram a cada dia.
A liberdade sem valor não sustenta o ser, e algum dia irá preencher suas angústias com drogas, bebidas, compulsões, ou violência. Os valores sem liberdade deprimem quem os carrega, e para sobreviver na prisão que os cerca, lançam mão de anti-depressivos atenuando o sufoco. No final, acabamos todos atrás de analgésicos para nossas dores de alma.
E seguimos, imbecilmente, insistindo nas velhas questões utópicas. O que é melhor?  Ser da esquerda ou da direita? Ser aceito ou se aceitar? Rebelar-se ou se adequar?
A primeira resposta cabível é “Você não precisa escolher”. Algo sempre estará excluído, e as dores geradas serão iguais...
Conquistei uma liberdade sofrida e batalhada, mas foram meus amigos livres que me inspiraram. Foi olhando para eles que soube que ela existia. Assisti, entretanto, vários membros desta classe sem limites, questionando seus passos, e buscando amparo ao lado daqueles que tanto disseram não para a vida. Talvez porque tinham algumas respostas que facilitavam as suas escolhas, talvez porque o tal excesso permitido nunca havia resolvido nada. Talvez porque abrir mão de algo, de alguma forma, alivia. 
Bom, finalmente pedimos os pastéis. Os sabores de sempre. Não se deixa de ser tradicional de uma hora para outra...
Na despedida, senti gosto de quero mais. Olhei feliz para ele, na motocicleta, com cara de liberdade, falando de tudo que ainda quer provar. Saí então, comovida, pensando que um mundo temperado seria tudo de bom. Simplesmente assim. De tudo um pouco.
Precisamos de regras. Mas precisamos de liberdade para questioná-las. Questionando, podemos quebrar a cara sim, mas, ao contrário, podemos quebrar a regra. Vamos ganhar experiência. Ou criar novas regras.
Por outro lado, sem regra alguma, poderíamos quebrar a cara demais, desnecessariamente, perder o foco, e não encontrar mais o caminho de volta.
É este meu conselho para quem quer educar os novos cidadãos do mundo. Tempero. Valores + Liberdade.Limites e conhecimento. Só isso garante escolhas conscientes.

E escolher conscientemente não é garantia de acerto. É garantia de aproveitamento total do erro, se houver. E de superação.
Não parece que a dor fica de fora? É o que senti. Nada de culpa. No lugar dela, reação e atitude. Acho que seria o fim dos vícios. Do tráfico. Ou da violência. Ou dos anti-depressivos tarja preta. Ou da droga de separação de castas no colégio...
Voltei iluminada.
Pois é, meu amigo. A gente deveria comer mais pastel...

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