sábado, 20 de novembro de 2021

O Portal Dourado


Eu estou me despedindo.

Olhei para os lados, e percebi que não haveria acenos. Somente silêncio. Sentei então por um instante, no final do caminho. A estrada terminava ali, era o último metro. Depois dela, o imenso Portal Dourado se abria, mas era um Portal sem volta. Eu tenho certeza de que, depois que o passasse, nada que eu via estaria ali para me esperar em um regresso. Não haveria regresso.
Existem viagens sem volta, e aceitar esta verdade é a única forma de continuar seguindo em frente.
Sentei na pedra mais alta, olhei o por do sol vermelho e intenso, e entendi que o dia - e uma era - acabava ali.O Silêncio é quente e doce, e as aves voam para seus ninhos depois de um dia inteiro de liberdade e busca. A brisa acaricia meu rosto e parece ter feições, parece sorrir para mim.
Acabou.
Olho para minhas mãos e não há mais nada. Tudo que carreguei foi ficando nas paradas, nas encruzilhadas, onde precisei escolher. Meus pés tocam a relva verde, macia e úmida, e sorrio para Gaia. Estou descalça, estou nua. Tudo foi ficando para trás, e aos poucos nem me lembro do que deixei.
Meus cabelos em trança formam meu véu, minha túnica, meu manto. E só.
Eu fui muitas coisas até ali.
Fui filha, fui irmã, amiga, amante, companheira, fui mãe. Fui aluna, colega, fui mestra. Fui donzela, mulher e anciã. Fui feroz, fui doce, fui errada, fui plena. Abracei, me perdi, entreguei, morri. Renasci, busquei, me enganei, cresci. Acreditei, andei, parei, fui traída, chorei. Tive, e perdi.
E agora, sentada no final da estrada, olho minhas mãos livres, meu ventre pulsando, meu peito em Luz intensa, e acredito que finalmente, venci. Venci a mim mesma. Venci meus apegos, minhas fraquezas, meus medos e minhas ilusões. 
Não que tenha sido fácil e indolor, mas eu aprendi a abraçar a dor. Eu a compreendi. Aceitei sua linguagem dura, seus enigmas, seus dons. E aos poucos ela se transformou em mel, se espalhou pelo meu corpo, e foi curando as feridas. 
Eu nunca poderia imaginar que ela seria meu néctar sagrado. Era ela o tempo todo, ali, a me cutucar, dizendo o que precisava mudar, e eu passei anos querendo apenas que ela se fosse. Ela não foi, graças a Deusa. Ela ficou, cutucou, doeu, esmagou... até eu aceitar conversar com Amor. Ela apenas queria Amor. O meu Amor.
Quando resolvi olhar minha dor, ela era um mar revolto. Tantas emoções em conflito, tantas frustrações, mágoas, rancores. Mas eu a amei. Amei porque entendi que era nela que estava a parte mais pura de meu ser, meu tesouro escondido. E seguimos. Foram anos a fio.
Hoje cheguei no último ponto da estrada. Sinto as luzes do outro lado do Portal esperando por mim. Sei que será maravilhoso.
Mas me sentei aqui um instante. Havia ainda algo a fazer, porque ainda não conseguia seguir. Não estava pronta.
Fechei os olhos, respirei profundamente e me perguntei "Por que não posso seguir? O que ainda preciso deixar?"
Meu peito começou pulsar mais forte, e meu coração disparou. Fiquei sem ar por alguns instantes, e logo percebi algumas luzes saírem do centro do meu ser. Eram amores.
Amores que cuidei,  que cultivei como sagrados. Corações aos quais me liguei, e criei a expectativa infantil de tê-los para sempre.Se quisesse seguir, eles teriam que ficar. 
Então senti novamente a minha amiga dor. As luzes saíam doendo fininho do coração, e eu as olhava, via os rostos queridos dentro delas, e sentia o peito rasgar. 
Eu via os olhares nos rostos, e sabia que não me viam. Viam algo antigo, uma imagem que deixei para trás há muito tempo, e eram incapazes de me ver. Pensei se eu os via com nitidez, ou se era igualmente equivocada, quem sabe... Mas estavam lá.
Estou aqui sentada, com o peito latejando em dor, cercada pela lembrança de pessoas que amei profundamente, e que hoje não me conhecem mais. Eu preciso seguir.
Mas como, se não sei o que fazer? Algumas já havia me despedido nas curvas da vida, e nem tinha mais notícias delas por muito tempo. Por que estavam aí ainda? E por que doía tanto?
Foi aí que percebi as falhas no meu corpo de Luz. Havia buracos deixados pelas luzes que se soltavam, e eles que causavam tanta dor. Buracos em mim. Vazios.
Respirei várias vezes, entrando em contato com minha essência, como já me acostumei a fazer tão bem. E sorri.
São meus. Meus pedaços. Eu havia liberado as pessoas, me desligado delas, aceitado nossas escolhas e caminhos diferentes. Eu havia seguido, e aprendido a amar o Agora e quem Eu Sou. Mas havia algo que não fiz.
Eu dei poder àquelas pessoas. Eu dei poder àqueles relacionamentos. Em cada um havia uma parte minha que eu havia perdido. Eu descobri outras partes, maravilhosas, desabrochei e cresci. Mas somente poderia atravessar aquele último Portal inteira. E eu não estava inteira. Era por isso que não conseguia seguir.
Parei então com muito Amor, olhei para cada luz. Agradeci por terem cuidado de minhas partes, mas que agora eu precisava delas de volta para seguir em frente. 
Acredito que algumas nem sabiam que carregam algo meu com elas ainda. Outras estavam muito ligadas à energia que eu reinvindicava.
O grande poder que dei a elas foi de me julgar. Eram pessoas que admirava, que respeitava, pessoas que amei, e dei a elas o poder de julgar meus atos e minhas escolhas. Eram minhas referências, meus mestres, meus guias. Alguns com Amor, outros pela dor, mas todos foram meus sinais quando parava para pensar sobre mim mesma. 
Agora eu precisava abandonar meus "Mestres" da vida. O que eles pensavam ou não sobre mim agora não era importante. O que eu pensava sobre seus julgamentos para me compreender e me valorizar não fazia mais sentido.
Então fui ordenando...
"Recebo de volta meu poder de julgar o meu valor como ser."
"Recebo de volta meu poder de julgar os valores que devo seguir."
"Recebo de volta meu poder de julgar o meu coração."
"Recebo de volta meu poder de julgar meu sucesso."
"Recebo de volta meu poder de julgar meus merecimentos."
"Recebo de volta meu poder de julgar como e quando gastar minha energia."
"Recebo de volta meu poder de julgar minha beleza."
"Recebo de volta meu poder de julgar minha alegria."
"Recebo de volta meu poder de julgar com quem devo me compartilhar."
"Recebo de volta meu poder de julgar e encaminhar meus dons."
"Recebo de volta meu poder de julgar a minha sabedoria."
"Recebo de volta meu poder de julgar meu poder."
"Recebo de volta meu poder de julgar quem EU SOU."
"Recebo de volta meu poder de SER quem EU SOU livre de qualquer julgamento."

"E agradeço profundamente o aprendizado que tive com cada uma das suas energias."


Elas então se esvaziaram aos poucos, uma a uma, a energia voltava para mim translúcida e colorida, e uma pequena esfera brilhante se ia, até eu perder de vista.

É por isso que estou sentada então, me despedindo. A cada esfera que se vai, um pedaço meu se refaz. Eu choro, às vezes baixo, às vezes compulsivamente. O retorno da energia faz meu peito vibrar intensamente, fica até difícil respirar.Mas aos pouco me acalmo. 

Quando a última esfera se vai, fico em silêncio. O sol quase se foi e a noite começa a chegar. Vejo a primeira estrela e a Lua Nova me cumprimenta. Eu adoro a noite. 
Olho ao redor, a escuridão me acolhe. Está tudo bem. Finalmente.
Levanto então, solto meu último olhar com lágrimas nos olhos para a paisagem que foi meu mundo há éons, e atravesso o belo Portal Dourado.
"Gratidão!".



Na Montanha Azul

Era para ser incrivel. Era para ser lindo, profundo, intenso, rico... Não digo perfeito, porque já tenho idade para saber nada seria assim. Mas era para ser muito mais do que é.

Quando mergulho na alma, na busca incansável de respostas reais, encontro espelhos turvos voltados para mim mesma. Imagens distorcidas da minha alma, meu sorriso, do meu olhar, todos refletindo com a mesma dureza de um punhal afiado. Tudo, absolutamente tudo, é criação minha.

As ideias absurdas de felicidade plena, as noites incríveis ao luar, os olhares incansáveis dizendo milhões de palavras silenciosas por segundo que poderiam estar cravados em apenas uma frase de Amor. Tudo são criações minhas, tortas, sem nexo, contendo pedaços de realidade, montadas pela minha ingênua ideia de romance. Reflexos de um coração sem rumo, sem voz, sem lugar, nômade no mundo humano, sem reais conexões ou um lugar de outra alma realmente para chamar de lar. Não existe isso de lar no coração de outro alguém. Isso eu aprendi. 

Vaguei em ideias e ideais, entre surtos, choros, êxtases e momentos de profunda paz. Conheci parte do Todo, rodei em círculos procurando desfechos para tantas histórias, e nada era real. Eram somente imagens minhas refletidas pela vida afora, completamente feitas do que não posso controlar. 

Olhando de fora, na montanha azul do meu céu, a dinâmica me parece tão simples que até me ofende... A Luz sai em raios intensos das profundezas da minha alma, alcançando seu ápice no farol do meu coração. Não percebo os desvios do mundo, a contaminação das ideias e valores, não considero pensamentos menores... Eu sigo meu raio com os olhos esperando desesperadoramente pelo que me mostrará. E ele chega. Toca o outro afoito e estranho, talvez até cego ou sedento, e vejo o reflexo apenas de mim mesma e meus anseios, distorcidos pelo caminho, pelo vento, pelas águas turvas do outro ser. Não reconheço nada que retorna a mim, me desespero, me frustro, me calo, me zango, me encolho e silencio. De quem poderia ser a culpa afinal?

Como culpar meu puro raio de amor tão cego pela inocência que carrega? Ou culpar os caminhos, os ventos, as águas, e a sombra que carregam dentro de si? Como exigir do outro que caminha as cegas como eu, por não refletir o que julgava ser eu mesma nele? 

Na montanha azul do meu céu paro atônita, envolvida pelo sentimento de total impotência, e sinto cada parte minha desmoronar. Vão se desfazendo corpos e cores, flores e amores, ideias, canções, poções... escorrem por mim, ou o que sobra do que fui, e se vão na missão de me libertar da minha própria ilusão. Procuro me focar no que sobra, sem me perder no que já não posso mais conter. Não quero conter. Dói segurar o que não pode ser. 

Sinto que sou menos, bem menos do que pensava ser. Não que isso seja necessariamente ruim, ao contrário, não é. É leve. 

Mas mesmo sendo muito mais fácil de ser e sentir, ainda me sinto vazia. Há uma intensidade que não consigo substituir. A leveza aos poucos me incomoda por não me levar às profundezas do meu sentir, e isso começa a me incomodar mais do que pensava. Eu não sou leve. Eu nunca fui leve. Se há algo leve aqui definitivamente não pode ser eu mesma. 

Separando o Eu do Não Eu, tirando da frente as ideias de iluminação engessadas, sinto aos poucos que sou feita de emoções intensas, de extremo frio e calor. Não sou leve, agora é uma constatação. 


Subo as montanhas mais altas na busca de um momento que justifique toda a escalada, sem medo algum. Posso viver anos nadando em mares profundos por um único beijo de amor que contenha a alma pura de alguém que vê o infinito no meu olhar e possa refletir isso no seu no segundo seguinte que pode ser o único. Ultrapasso a tempestade, luto com as sombras, congelo... mas preciso de um abraço tão quente e real que me cure de todas as feridas do caminho. E tudo estará bem.

Mas onde está o caminho? Onde está a estrada? 

Aqui na minha montanha azul, não encontrei nada ao pico, apenas uma música melancólica mas linda que parecia ler minha vida com tons altos e baixos, com harmonia perfeita. Só. 

Não encontrei braços que me abrissem uma nova Luz, olhares que me permitissem mergulhar em um segundo de alegria silenciosa, não encontrei calor. Apenas eu mesma e minha música. Minha história. 

Aos quatro cantos o grande mistério se formava e me envolvia, e ali era o fim. Respirei o mais profundo que pude, e aceitei. Parecia um tanto justo que terminasse como começou... um suspiro. 

Mesmo sabendo que tudo que vejo daqui é agora ilusão dos meus sentidos refletidos em tudo que toquei, me dei meu luto. Era irreal, mas era meu. Era eu de alguma forma, distorcida mas forte.

Aos poucos a neblina tomou conta de todo vale ao redor, e a música se tornou mais doce. Eu me sentei, e desisti. Não valia mais andar, pensar, desejar ou simplesmente olhar. Do que é feita a realidade então? 

Fiquei ali, juntando os pedaços por mim desconhecidos, e me abrindo para algo que não posso imaginar. Percebi que desta forma não crio, não projeto, não se reflete, não se distorce, não dói. Apenas é.

Mas ainda estou só. Isso ainda não consegui resolver. Vou me focar na música, talvez até a montanha em algum momento se dissolva, e eu possa caminhar em solo fértil novamente na próxima manhã de sol.

Quem sabe.