quinta-feira, 31 de maio de 2012

Pura roda da vida



Eu amava, mas sentia um medo enorme de perder a sensação de êxtase e de alegria que o amor traz. Não fazia sentido tal medo, mas ele sempre me voltava ao coração, principalmente quando ele me olhava fixamente nos olhos. Era muito bom, mas doía. Por que eu sentia tal dor?
Um dia, quando estávamos fazendo amor, ele me olhou nos olhos fixamente e disse que me amava. Uma pontada forte surgiu no meu peito, meus olhos se encheram de lágrimas e de repente eu sabia a resposta. Uma reviravolta se fez na minha mente em um segundo, e tudo fez sentido para mim.
Lembrei de uma vivência que tive, anos antes de conhecê-lo, que me trouxe a lembrança de vidas antigas.
Naquele dia, enquanto eu respirava e tentava esquecer meu corpo para sentir meu espírito, eu senti que flutuava, que estava em dois lugares ao mesmo tempo. Uma música com melodia árabe ficava cada vez mais forte, e sem dar tempo para entendimento algum, minha mente me arrebatou.
Era só areia e céu, mais nada. Eu estava na garupa de um cavalo branco, em pleno deserto escaldante, com um homem à minha frente, que conduzia o animal. Eu podia sentir meu corpo chacoalhar ritmado com as passadas do cavalo, e o roçar do corpo do homem que o conduzia, de quem eu parecia sentir uma enorme aversão. Estávamos em caravana, cerca de vinte cavalos, mas não era muito importante para mim o destino que buscávamos.
Percebi nitidamente que eu era escrava, não podia escolher o meu destino. Estava presa àqueles homens que desprezavam e sentia minha vida repugnante e vazia. Uma enorme amargura permeava minha alma, mas o sentimento que realmente tomava conta do meu ser era uma dura e descomunal raiva. Meu ódio era tão grande que senti que poderia matar todos aqueles homens com minhas próprias mãos se tivesse oportunidade. Mas parecia que minha rebeldia os divertia ainda mais.
Os homens cavalgavam falando alto e rindo, enquanto eu, em silêncio, fechava meus olhos e apertava o pingente que carregava no cordão do meu pescoço. No fundo da minha alma eu pedia fervorosamente que alguma coisa acontecesse como um milagre, e me tirasse dali.
Talvez aquele fosse o meu dia de sorte. De repente o horizonte mudou, e uma tempestade de areia chegou sem aviso algum, surpreendendo animais e homens. Os cavalos se assustaram, e a marcha não pôde ser controlada pelos homens irritados. A areia levantava do chão, parecia vir de todos os lados,e logo nada mais podia ser visto.
Uma emoção forte tomou conta de mim. Era o meu momento! Eram os deuses do vento atendendo minhas súplicas, finalmente! Em segundos, agradeci aos céus e pulei do cavalo, escapando do homem que me segurava. Contei com a confusão que se fazia, todos gritavam tentando segurar as cargas, e esbarravam uns nos outros sem saber o que fazer ou para onde ir. E eu comecei a correr.
Eu corria muito, muito rápido, sempre na mesma direção, sem soltar meu amuleto contra o peito. Algo me guiava e eu sabia que precisava ir o mais longe possível de tudo aquilo.
Não sei quanto tempo consegui correr sem parar, sem olhar para trás. A tempestade estava longe, eu já nem sentia mais o vento, mas eu não ousava olhar um segundo para trás. Segui adiante.
O sol forte foi enfraquecendo seu brilho, e depois começou a se pôr. Eu continuei correndo o quanto pude. A única coisa que me movia era fugir, fugir, e nunca mais parar de fugir. Exausta, andei por várias horas, rastejei alguns metros, e finalmente, caí, sem sentidos, com a visão do fim da tarde à minha frente.
Não sei quanto tempo passei desacordada. Lembro de ouvir alguns passos de cavalo perto de mim e tentar me levantar. Mas meu corpo não respondia, estava paralisado e tomado por muita dor.
Com muito esforço, abri um pouco os olhos ao mesmo tempo que fechava a alma. Já imaginava aqueles homens horríveis na minha frente e um verdadeiro desespero cresceu em mim. Dei-me por vencida, e a única coisa em que pensava era que a morte me parecia uma bênção naquele momento.
Foi quando o vi. Ele vestia uma túnica negra e um tecido da mesma cor cobria todo o seu rosto, menos os olhos. Belos e profundos olhos esverdeados...
Aqueles olhos me trouxeram uma paz sem explicação e eu não pude ter reação alguma enquanto ele me carregava e me colocava sobre seu cavalo. Acho que me entreguei meu corpo ao cansaço, enquanto sentia o belo homem atrás de mim.
Chegamos a uma pequena tenda erguida no meio do nada. Não podia ver mais ninguém além de nós no lugar. Rastejei no chão, arredia, fugindo do seu alcance. Ele me ofereceu água e algumas frutas, sem pronunciar palavra alguma.Desconfiada, esperei que ele colocasse tudo no chão e depois se afastasse, me permitindo pegar a comida com a uma distância que me deixasse segura.
Ele sentou no chão, no canto oposto da tenda e ficou me olhando comer, em silêncio, com os olhos fixos em mim. Tentei ficar alerta, mas, muito cansada, caí em um sono profundo depois de comer.
Quando acordei, ele estava de pé, me olhando. Chegou perto de mim bem devagarinho, com cuidado, espantando aos poucos minha rebeldia.
Eu não sei explicar ao certo como aconteceu, mas o que se seguiu foi um belo encontro de duas almas através do calor de seus corpos. Olhando nos olhos dele, todo o meu medo se foi. Eu senti cada carinho, cada gesto, cada toque, como um bálsamo para minhas feridas abertas, tanto no corpo, como no coração. Senti o olhar dele gravado na minha alma e tive certeza de que nunca mais esqueceria aquele olhar...
Fizemos amor várias vezes, eu parecia sonhar, até que nossos corpos cansados adormeceram um ao lado do outro.
Acordei refeita, na plenitude do milagre que o amor pode trazer. Contemplei o belo homem, adormecido ainda, no chão. Eu sentia uma imensa alegria dentro de mim. Era como se toda a minha vida tivesse, finalmente, um sentido.
Eu não sentia mais raiva. Eu não sentia mais tristeza. Eu não desejava mais morrer. Eu havia acabado de conhecer um sentimento maior e mais poderoso do que o ódio que desde sempre tomara conta de mim e guiara a minha vida até então.
Saí da tenda até um pequeno barril de água que ficava no lado de fora, e fui lavar meu rosto, agradecendo aos Deuses dos ventos que haviam me guiado até minha salvação. Eu apenas havia pedido liberdade, e fui abençoada com algo mil vezes mais valioso.
Estava tão absorta, de olhos fechados, entregue às minhas orações, que nem o percebi. O homem corpulento saiu de trás da tenda, ainda montado em seu cavalo, e me agarrou, segurando violentamente os meus cabelos. Nem consegui gritar. Apenas senti uma dor aguda vinda das minhas costas, onde um punhal foi enfiado sem piedade alguma.
Ele ria ruidosamente quando olhou para os olhos desesperados do homem que saía surpreso da tenda.
Resisti à dor, o mais que pude, para olhá-lo novamente, enquanto meu corpo caía, desfalecido. Ele correu até mim, desesperado, enquanto o homem nem ao menos olhou para trás e saiu a galope, com o ar de dever cumprido.
Eu senti meu corpo enfraquecendo rapidamente, e vi tudo escurecer. Lembro que logo após a escuridão vi o mesmo corpo, ao meu lado, já não mais guardando a minha alma. Observei o belo homem carregá-lo para dentro da tenda sem dizer uma só palavra.
Meu espírito doía intensamente, e eu chorava muito. Minha alma recém saída da vida estava muito desesperada, gritando dentro de sua enorme dor.
Por quê? Por que não me deixaram morrer antes de tudo o que acabara de viver, quando a morte era o que eu mais queria? Por que me deixaram vê-lo, senti-lo, para depois partir? Agora, partir doía imensamente. Antes, seria minha maior alegria. A dor era tanta, que a visão foi se perdendo da minha mente.
Minha consciência se voltou para dentro de si mesma, recobrando meus sentidos. Respirava ofegante para conter a dor no meu peito, enquanto tentava me equilibrar.
Voltando da visão, senti como meu espírito havia se revoltado muito com aquela morte. De alguma forma eu sabia que ele demorara muito para aceitar o que eu naturalmente havia entendido ali, naquela vivência tão nítida.
Não foi um castigo. Aquele homem havia me salvado. Não da tempestade, mas de mim mesma. Se a morte que eu tanto desejava me acometesse antes de conhecê-lo, tudo o que minha alma carregaria seria ódio e revolta quando partisse. Mas não foi assim que aconteceu.
Naquele pequeno, lindo e verdadeiro momento, meu belo homem plantou dentro da minha alma, horas antes de minha passagem, um eterno e profundo sentimento de amor. Por causa deste amor, novas portas puderam se abrir. Por causa deste amor, minha vida espiritual tomara outro sentido depois da minha partida. Foi uma bênção que mereci, e não um castigo como me pareceu naquele momento tão duro.
Voltei da visão com uma dor profunda no peito. Acho que assustei minhas amigas de meditação, pois todas olhavam espantadas para meus olhos vermelhos e inchados. Eu havia chorado durante quase todo o tempo, realmente.
Foi tudo muito forte, e guardei para sempre comigo. Nunca mais me esqueci dos olhos daquele homem.
Agora, muito tempo depois, ali estava eu, escutando uma declaração de amor do homem me amava. E em um relance apenas, reconheci seu olhar. Eu olhava para aquele mesmo olhar. Agora, ali estava eu, fazendo amor com o mesmo homem cuja alma me trouxe uma pequena, mas tão importante dose de amor em um passado tão distante.
Ele me dizia que me amava e me olhava, sem entender meus minutos de silêncio, alheio ao turbilhão que se passava dentro de mim.
Finalmente abri os olhos, e olhei nos olhos dele, mas não consegui responder sua declaração de amor. Era muito forte o que eu sentia diante daquele olhar. Se antes eu já o amava profundamente, agora ele me parecia mágico, encantado, quase irreal.
Eu entendi porque sentia tanto medo de perdê-lo e porque seu olhar me falava tão fundo à alma. Porque meu medo surgia exatamente nos momentos em que ele me fazia mais feliz, e porque eu sempre sentia que o mundo poderia ruir a qualquer sentimento de prazer e alegria.

Pensei que, se a cada dia ainda busco uma parte de mim, se ainda me pergunto se faço tudo o que me comprometi a fazer nesta vida,  se ainda não sei a causa de todas as dores, se não sei o que me faz repetir alguns padrões de erro, vida após vida, acumulando problemas a resolver e a consertar, se não sei o que será de mim amanhã, hoje eu sabia a verdade mais valiosa que poderia pousar na minha alma.
Naquele momento eu tive a maior certeza do mundo de que existe mesmo uma mágica por trás disto tudo que vivemos, administrando as dores, as culpas, os medos, as certezas e as dúvidas. Uma mágica que não permite que se cometa apenas os mesmos erros, mas que também faz os momentos mais belos da nossa existência se repetirem, se atraírem, iluminando todo o resto.
O que poderia mais fazer naquela iluminada noite? Suspirei profundamente, soltando amor e gratidão com o ar que respirava. Deitei minha cabeça no peito forte do meu amor, e muito, muito feliz, fechei meus olhos.
E agradeci em silêncio àquela bela mágica que, depois de tanta dor e desilusão, permitiu que eu tivesse o calor daquele momento, a paz no meu coração, e os meus belos olhos verdes, finalmente, de volta para mim.
Pura roda da vida.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Memórias



Diante da bela visão da minha montanha de quartzo rosa que avisto da minha varanda, eu solto um pouco minha alma e ecôo pelos ventos minha simples pergunta. "Para que isso tudo, afinal?"
Eu tento, mas não posso evitar. Cada quadro me vem à mente, claro e detalhado, e eu me permito um momento de devaneio me perguntando para onde se foram cada uma de todas as vidas que ainda posso me lembrar.
Onde está o destino de tantas lutas, de tantas mortes prematuras? Cada fogueira, cada batalha, cada forca, cada prisão? Todas as certezas defendidas com tanta honra e respeito, cada amor desfeito em prol de algo sempre maior?
Eu as sinto todas dentro de mim, vívidas e claras, às vezes mais do que poderia desejar, mas procuro em vão o seu destino.
Os dias de descoberta na Lemúria, a perda da pátria, os séculos de escuridão e desassossego. O emergir, o entender, o aceitar e o abrir.
As areias do deserto, a vida nômade falando com o vento e descobrindo o caminho que a água falava. A dignidade dos oráculos da Mãe, a beleza do amor divino no seio da Deusa Sagrada.
A violação do sagrado, a corrupção dos valores, e a revolta interna que somente a dor insuportável pode criar. A perda, a luta, a culpa. Mais dor.
Para que tanta dor?
O Salvador, a esperança, o Seu perdão. Uma nova caminhada, então. Os passos da Grande Senhora e Seu Caminho. Uma nova direção a seguir.
As brumas das sacerdotisas de Avalon que insistiram em desacreditar, por puro medo dos mistérios que podiam carregar. A distorção dos fatos sagrados. A esperança na linhagem sagrada que simplesmente se corrompeu, e nada mais poderia oferecer. A promessa da guarda dos mistérios. A esperança da libertação de cada um deles. Um dia.
Mortes por ver a verdade, por não poder negá-la. Mortes pelo poder que a Mãe concede a cada uma que se ampara na Sua Luz. Mortes por justiça. Mortes, mortes, mortes. Tantas, que não consigo contar.
Despedidas de tantos olhos contendo uma promessa de amor. Vidas em solidão. Fé no que não se pode explicar.
Hoje, nestes tempos esperados, diante de tantos terremotos nos mesmos lugares onde minha dor foi sepultada, sinto que algo sai com a terra remexida, e não sei dizer se é bom. Mas deve ser.
Sinto um cansaço sem explicação, fisicamente falando. Tenho tanto sono, quero sempre dormir.
Uma longa estrada vivida, tantos sacrifícios, tantas perdas. Quando acabara? E onde, afinal?
Meu amigo Madureira diria que sempre se pode escolher a saída pelo lado esquerdo de qualquer lugar. Bom conselho, sempre preferi o esquerdo de qualquer coisa, mesmo. Minha irmã, amante fiel da vida, me diria que tudo é uma grande história digna de um final feliz - ela sempre acredita que um final feliz está sempre prestes a chegar. Posso ver minha querida tia Edna sorrir aquele sorriso irônico de quando queria mesmo era chorar, e me dizer "Pois é... quem merece esta vida neste mundo todo louco?". Minha amiga de alma Cristina soltaria uma risada nervosa e diria "É isso aí, Remarajane (é assim mesmo que ela me chama, não é erro de digitação), não adianta chorar. Força na peruca e equilibra no salto alto que a festa já já vai começar!". Meu querido Jamil diria simplesmente "Esquece, tudo isso já passou." Eu os amo tanto, todos eles. Mas infelizmente, ainda não passou. Algo ainda ecoa na minha alma e não faço idéia de como sairá.
Meus amigos cavaleiros me cercam e minha alma deseja chorar. "Para onde, meus amigos, para onde vamos agora?"
Eles não respondem, respeitosos em suas poses de protetores eternos.
Muitos aparecem, aos poucos, sem resposta. Talvez eu mesma não queira que respondam. Apenas que fiquem comigo.
Tudo para estar aqui, exatamente aqui, hoje. Tudo. Esperei tanto por este momento, desejei os dias em que os mistérios lacrados fossem enfim revelados. Achei que me trariam paz.
Tantas vidas, tantas batalhas. Cada palavra guardada e repetida por gerações para não se perder. Para que afinal?
O mundo continua nublado, mas sinto agradecida, que algumas belas luzes se fazem ver. Não discordo que muita coisa mudou. Eu mesma acredito que nesta vida não serei queimada ou presa por ser quem sou, e acreditar no que acredito, e ver o que vejo - isso é visivelmente um progresso! Agora posso ser apenas louca, mas não uma ameaça (pensando bem, será isso mesmo um progresso?).
Depois de tanto vivido, sinto um desejo profundo de descansar. Muito mesmo. Não quero mais batalhas, nem lutas, nem perdas. Eu me cansei de todas elas. Eu simplesmente gostaria de viver.
Mas para onde? Quando anunciarão o final das perdas? Quando será realmente o fim da busca e o início do encontro?
"A resposta está sempre dentro de nós." É o que diriam os Mestres. "Voe, ser azul, voe, o mais alto que puder voar". Lembro a cada dia das palavras do belo anjo Ei-Lah, a cada vez que eu dizia que eu não podia, que não sabia para onde ir.
Voar. É o que procuro fazer há anos. Deus sabe como procuro. Já dei alguns rasantes, admito. Mas voar mesmo, assim, com magnitude e liberdade, continua sendo uma busca.
Diante da minha bela montanha, percebo que ela é a que mais me segura em pé. Ancora meu ser, doa sua força, sem nada cobrar. É minha relação mais produtiva atualmente - não posso deixar de rir ao perceber o quanto dramática é esta afirmação, ainda que verdadeira...
O que a Humanidade ainda precisa, ainda espera de pessoas como eu? O que as pessoas que amo, que convivo, que acreditam, pensariam de mim neste momento?
A montanha não responde. Assiste, abnegada, e me manda doces raios cor-de-rosa que se unem à minha aura confusa. Acalma.
Os anjos, os índios, as belas sacerdotisas, todos se unem aos calados e bravos cavaleiros.
Apesar de tudo, parecem tão calmos que me acalmam. É tudo uma questão de tempo e vontade.
Fico, então. E espero o momento certo. É o que mais aprendi a fazer.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Desistir...


A sobrevivência é algo sórdido às vezes. Estrangula a imaginação.
Para existir, desista, parecem me dizer os ventos frios de Outono que me chegam ao rosto, me despertando do transe.
Desista do que queria. Desista de entender. Desista de saber. Desista de poder. Desista, desista, desista.
Assisti ali, sentada na praia da minha vida, cada onda levar lentamente, um pedaço de mim. Uma após a outra, engoliam um pedaço da minha história, apagavam meus sonhos escritos na areia, ruíam os castelos tão frágeis sobre os quais ergui minhas certezas.
Elas se iam tranquilas, como se não percebessem o estrago que faziam. Deixavam a areia lisa, sem marcas, sem história para contar.
Tudo se foi. Parece que nada mais ficou. No final, As histórias só sobraram dentro de mim. Ali, as ondas não puderam alcançar. Infelizmente. (Ou não?)
Esperei um milagre, desejei o que pude. No início tentei controlar. Entrei e saí da alma tantas vezes quanto me foram dadas as chances através dos dias. Mergulhei nas lágrimas não resolvidas, em descobertas não vividas, em detalhes de vida que desconhecia, mas que poderiam ser minha salvação.
Eu quis reagir, eu quis lutar.Não havia nada a fazer, entretanto. Desisti.
No final, fiquei exausta, ali, sentada, olhando o pôr-do-sol alaranjado dos dias que terminam, e observando no horizonte a sua união com o mar das emoções que nunca se findam, nem se acalmam. Indo e vindo, trazendo e levando. Impondo a vida do jeito que ela é, desprezando o que a alma pediu. Ou o que o coração ardentemente, desejou.
Nada mudou. Ou melhor, tudo continuou mudando, ininterruptamente. Mas nada na direção em que meus olhos olhavam com tanto ardor. Então os fechei. Foi melhor assim.
O desapego é louvável. Mas gostaria que ele se desapegasse de mim um pouco. Que fosse pousar na praia da vida de outra pessoa, para variar.
Desista, desista, desista. Sobrevivo então. Afinal, o que nos resta depois do tal desapego? 
Fechei apertadamente meus olhos, com um medo infantil de descobrir. O que há depois dos sonhos que se foram? O que existe depois das lágrimas que secaram e lavaram sua alma? Qual será o rosto do completamente desconhecido?
Eu poderia abrir meus olhos, eu poderia tentar. Mas tenho medo de perder o que guardei com eles fechados, e nunca mais me encontrar. O que será de mim sem tudo o que tanto amava?
Não, eu não deixei o desapego tomar conta de mim. As águas chegam aos meus pés, mas eu os encolho, me recolho para dentro de mim, como se pudesse fugir do destino. Não posso. Mas que remédio, parece doer tanto.
E se ele me esquecer, e se eu ficar bem quietinha?
O vento me diz que tudo ficará bem, que nada vai me ferir. "Ilusão, o sofrimento é pura ilusão!" ecoam pelos ares animados. "O fim do desapego é a paz."
Não sei. Continuo apenas escutando as ondas do mar. Elas não param, com seu ir e vir melancólico, ignorando meu desespero. O vento zuni, esfria minha pele, me chamando para acordar.
Eu não quero. Não estou pronta. Ainda não.

Paciência



Prometi que esperaria. Mas esperaria de verdade.
Prometi que viveria os dias redescobrindo a vida, minuto a minuto, sem julgar, projetar, sem expectativa alguma.
Prometi que veria o sol nascer e sorriria, que veria cada rosto à minha frente e prestaria atenção na sua alma, e receberia a sua mensagem. Prometi que seguiria os sinais do Universo a cada passo, que leria minhas direções em cada palavra que ouvisse, e nas batidas do meu coração.
Prometi que daria tempo para cada inspirar e expirar, que daria oportunidade para todo o meu corpo sentir o novo ar entrar antes de jogar fora o minuto passado e andar adiante. Prometi que leria o que me fizesse sorrir, que só guardaria o que me fizesse brilhar quando me lembrasse.
Prometi ver o entardecer com calma e gratidão, e deixar ir com o sol todo o dia passado. Prometi encontrar a noite com a alma branca como a lua, e abrir a mente para os mistérios ocultos nos sonhos. E só.
E no outro dia, esperaria um pouco mais.
Porque esperar é tão poético, sutil, tênue, tão frágil. Esperar não cria, não muda, não move. Mas às vezes protege, esclarece, resolve. Esperar explica. Ou complica. Mas às vezes não dá para ser fácil, afinal.
Esperar é a única forma de deixar a criação acontecer quando o que se pode, se finda. Esperar também é divino e belo. E requer coragem.
Eu entendi que nesta energia de quaresma, de introspecção, de questionamento, de testes e revalorização de conceitos, a melhor opção seria esperar. Esperar o que vem de fora, e ao mesmo tempo revolucionar o que mora dentro.
Prometi que esperaria, pois eu saberia quando a espera chegasse ao fim, se completasse.
Esperar o quê? Acredito que a vida. Uma nova vida. A vida que se renova na Páscoa, a vida que se renova quando o entendimento chega finalmente ao ápice, e se sente que se pode novamente realizar. Com o que sobrar. Ou talvez não possa sobrar. Talvez a tarefa seja criar o novo, a partir apenas do novo. Sem bagagem.
Eu prometi que não me prenderia à bagagem. Que esperaria sozinha, em essência pura e simples, mas inteira e renovada, de braços abertos, pronta para abraçar novamente. Porque o futuro vai ser digno de abraço.
Mesmo quando falo, sinto que ouço. Mesmo de olhos fechados, sinto que observo. Mesmo quando ando, sinto que espero.
Eu prometi que esperaria. Esperaria algo assim, tão bom, que precisa de tempo para chegar.
E saber disso me acalma quando penso em seguir.
E me faz continuar a esperar.

Amor



Eu conheci um amor nesta vida. Ou pensei ter encontrado.
Ele nasceu puro e infantil, cresceu, tomou corpo e acordou o espírito. Flutuou com minha alma por caminhos nunca conhecidos, libertou meus medos, sacudiu minhas convicções.
Por ele, deixei de lutar e passei a aceitar. Abri mão de estar certa sempre, concedi a palavra quando queria falar. Amansei a voz em vez de gritar. Por ele esperei, alimentei, insisti, esqueci, abri mão e até desisti. Ele entrou na minha alma devagar (ou terá sido em um terremoto?), transformou o que existia e me fez voltar a sonhar.
Voltei a prestar atenção no olhar, no tom de voz ou na cor da roupa. Lembrei do calor de um abraço fora de hora, de um ombro presente a cada momento, de dividir o cobertor, o sorvete, o carro, o problema, o canal da televisão, os planos da vida, o pacote de pipoca. Lembrei da sensação de abrir mão do que se quer e mesmo assim sentir o calor da felicidade atravessando a alma. Lembrei da sensação de receber, de repente, um olhar apaixonado, uma blusa no frio, um abraço no desânimo, ou de ter sempre um beijo no final do dia, ou um pé encontrando o meu embaixo do edredom no inverno. Lembrei como é maravilhoso estender a mão, mesmo sem olhar para o lado, e sentir outra envolvê-la, sem mistério algum, e andar de mãos dadas, em uma simples calçada. Eu lembrei de como é bom viver a vida em parceria.
O amor envolveu minha alma, e eu simplesmente o tomei como parte de mim.
Mas não era bem assim, pois, um dia, ele se foi.
Assim como muitas coisas se vão, e outras permanecem para sempre, acho que alguns amores têm data para terminar, e outros (que inveja!) permanecem vivos por todas as estações da vida.
Porque amar não é viver sempre na primavera.
O meu amor nasceu em pleno verão, aquecido, forte, estrondoso e avassalador.
Passou por um outono cada vez mais frio e depois se perdeu em meses e meses (ou foram anos?) de um inverno muitas vezes cruel.
Acho que alguns invernos são mais cruéis que outros, afinal. Pois o meu foi longo. E devastador.
Os amores que sobrevivem ao inverno só percebem que ainda vivem quando sentem a neve derreter aos poucos e alcançam a visão tímida do sol (sim, porque mesmo aqui no Brasil, neva nos nossos caminhos e nos nossos corações, em várias fases da nossa vida). Estes sortudos e corajosos amores respiram então, aliviados, o ar fresco e esperançoso da Primavera que começa a nascer nas suas vidas. E em recompensa, a Mãe Natureza lhes dá novas flores, novas chances, novas e belas estradas a seguir. E um tórrido verão para comemorar a dedicação e tanta coragem!
Até chegar o outono brando... e a roda voltar a rodar. Com o tempo ele acostuma, e tira de letra as variações da paisagem e da temperatura. Isso se chama sabedoria. Até amor precisa disto.
O meu amor não pôde ver a primavera chegar. Ele adoeceu de frio, talvez não tenha aquecido o bastante o interior do seu ninho de inverno. Talvez não tenha fechado muito bem as portas e janelas, deixando o frio de fora entrar. Talvez o inverno tenha sido rigoroso demais. Ou o amor, ele mesmo, achando que seria eterno, tenha sido pouco precavido.
Não o escuto respirar (ou será que ouço ainda um tímido suspiro, querendo resistir? Não, acho que não...).
Poucos amores vêem novamente a esplendorosa primavera, pela segunda, ou terceira vez. Poucos se preparam, resistem para alcançá-la.
É preciso aquecer a alma no sol do verão, para resistir ao frio quando chegar (ele sempre vem...). É preciso acreditar, cuidar, para encontrar a luz do sol, novamente, no final de cada ciclo da vida. Mesmo porque não é a intenção que se viva apenas no frio do inverno. É preciso buscar sempre a próxima flor da nova estação, e se renovar na beleza que ela pode trazer. É disso que é feita a história de qualquer amor.
Eu conheci um amor nesta vida, mas ele não foi forte o bastante. Ele me arrebatou, me fez acreditar, envolveu minha fé, minha esperança, minha vontade, transformou minha história, e me deu todas as alegrias do mundo. E o vazio que ele deixa, ao ir, me faz lembrar porque resisti tanto a adotá-lo no meu coração.
E o que aprendi com ele, é que um amor assim, deste tamanho, sempre deixa cicatrizes muito profundas. Marcas que doem, que lembram como surgiram, talvez para nos alertar nos próximos verões em que os corações se permitem esquecer.
Eu não vou esquecer.


Algumas palavras...
A Roda da Vida. As estações. Mudanças, altos e baixos, criações e destruições, chegadas e despedidas. Isso é vida. E às vezes dói.
Não se é evoluído quando se sabe ser feliz sempre. Se evolui quando se consegue sorrir até quando sangra o coração, pois se acredita que tudo é como deve ser. E se espera a próxima primavera.
Momentos tristes são eternas fontes de auto-conhecimento. Os alegres são naturalmente projetados para fora, expandindo a aura e a visão, são para compartilhar.
E assim a roda gira. Para dentro, para fora, inspirando, expirando, pulsando vida a cada respirar.
O segredo está em não prender a respiração. Nem no triste, nem no alegre. Em qualquer um dos dois, pode matar...
Que a natureza nos guie. Como sempre.

Pedaços



Voar, voar, voar. Até cansar. Ou até cair.
Quem sabe.
E se cair, vai doer? Ou será que já doeu na viagem?
Sem sentir. Ou sentindo tanto que se perde na terminação nervosa em algum ponto.
Quem sabe.
Eu preciso saber.
Quando um pedaço seu é arrancado, e você continua respirando, então o pedaço não era realmente seu, afinal.
Quando seu mundo desaba e sobra apenas você, então o mundo não era realmente seu, afinal.
Ilusão. Sempre ela, confundindo, criando voltas em torno de coisa alguma, elegendo reis que nem ao menos merecem uma coroa.
Como saber se me iludo? Desiludindo? E não parecem ambas péssimas alternativas? Como duas coisas antagônicas podem ser igualmente ruins? Quem sofre mais, o iludido ou o desiludido?
Quem sabe.
Eu não sei.
Sem pedaço, sem mundo, sem ilusões.

O que resta deve ser essencialmente... o real!
Dureza esta coisa de realidade.
Dói quando se cai. Tanto que não se sente.
E aí, só resta ficar de pé.
Eu preciso saber. Mas ainda vou esperar um pouco mais.
Será que ainda tenho pés?

Tudo diferente de novo



É preciso se reinventar.
Ser outra pessoa, baseada em tudo em fomos e deixamos de ser.

É preciso abandonar idéias, verdades, mitos e certezas; é preciso mergulhar fundo no âmago do ser que sobra (quando puder achá-lo) e renascer. Simplesmente ser de novo, criar outro ser. Ou libertar o tal ser que ficava escondido atrás de todas as outras tralhas que acumulamos e cultuamos por séculos.

É preciso chegar até a ponta do abismo, é preciso olhar para ele de frente (ou não, deve ser mais prudente fechar os olhos...) e pular.

Talvez se jogar seja o termo mais apropriado. Ou se largar. Para encontrar.
Deve ser algo assim que fizemos quando resolvemos nascer de novo, abraçar uma nova empreitada neste mundo que nos acolhe hoje. Nós simplesmente, nos jogamos. E eis o novo feto pulsando vida depois da coragem inicial.

Mas não é tão simples na prática. Já tive certeza de não ser tão corajosa quanto um feto (aliás, o mesmo que um dia fui), ou menos impulsiva. Ou não podia fechar os olhos diante do desfiladeiro (quem poderia me julgar por isso?). Ou não sou quem achei que fosse. Quem sabe.

O fato é que eu existo. O desfiladeiro existe. E estamos em um impasse. Ele parece enorme e sem fim, mas prometia ser a grande descoberta da minha vida. Eu tremi e busquei dentro de mim algo que pudesse me equilibrar diante da visão perturbadora. Que remédio?

É preciso renascer, a partir das próprias cinzas. Mas eu não sei se já queimei tudo direitinho, até o fim, dentro de mim.

É preciso desapego. Mas minhas unhas se desgastam na última tentativa de segurar algo conhecido, que traga segurança, mas são vencidas. Para que segurança afinal? Estou tão cansada que é mais fácil deixar ir. Lutar não significa mais nada além de cicatrizes. E algumas decepções.

Então, mas por falta de alternativa que coragem, eu caio. Pronto. Eu fiz.

Espero tantas emoções controversas,
mas apenas flutuo. É melhor dizer que vôo, ao contrário de cair. Talvez seja mais lento com os apegados. Talvez os livres de espíritos simplesmente voam a jato para suas novas direções. Para mim, flutuar já basta.

Surpreendentemente não olho para trás. Nem para baixo. Acredito que não olho para lugar algum. Acho que apenas sinto meu peito e tento entender o que sinto. Medo? Entusiasmo? Ansiedade? Alegria? Saudades? Dúvida? Não, dúvida é a única coisa que sei que não sinto. Eu já havia esgotado todas as minhas possibilidades, esmigalhado todas as minhas tentativas de conquistar estabilidade e alegria onde estava. A única certeza era seguir em frente.

É preciso se reinventar. Juntar pedaços de alguém que já existiu - ou aqueles que sobraram desta pessoa - e misturar de novo, ver seus outros lados, procurar partes escondidas que não havia notado - ou dado importância. Ser de novo. Nascer.

Há quem diga que é simples. Eu pessoalmente acredito que nunca fizeram direito, pois se reinventar dói de uma forma monumental. Muito. Dentro e fora.

Senti com minúcia, cada parte. Coisas são perdidas, pessoas se despedem, ou se despem, e as despedimos. Coisas invisíveis ficam a mostra e não podemos ainda tocar. Às vezes desejamos não as termos visto... Mas estão lá, e não irão embora nunca mais. Apenas esperam pacientemente serem conquistadas.

O mundo muda, ou você o vê de uma forma incrivelmente diferente. Mas não sabe fazer nada com isso. E a dorzinha insiste em voltar. Respira! Você está caindo no precipício da nova vida! Você está se reinventando! Isto não deveria doer!

Disseram que seria lindo e profundo. Inspirador. Que abriria horizontes, mente e possibilidades. Que traria cor e perfume ao que ainda não podia ser visto, mas apenas sentido, antes da coragem fatal. Disseram que você seria plenamente feliz com a sua reinvenção.

Bom, é verdade. Eu sinto que é tudo verdade.

Talvez o problema sejam os meus pedaços. Talvez eu não consiga enxergá-los com clareza. Ou ainda não se encaixem pois faltam partes minhas a desvendar. Ou eu tenho uma imagem final criada que ainda não larguei na queda e me tira da estrada. Ou do prumo.

Pois é. Continuo caindo. Imagens vão se formando, e eu me despeço, logo após cumprimentá-las. Nada ainda ficou. Eu ainda não parei.

É preciso me reinventar. Eu sei.

Mas é ainda mais urgente acreditar, e não desistir de sonhar com o que se quer criar a partir de si mesmo.