quinta-feira, 31 de maio de 2012

Pura roda da vida



Eu amava, mas sentia um medo enorme de perder a sensação de êxtase e de alegria que o amor traz. Não fazia sentido tal medo, mas ele sempre me voltava ao coração, principalmente quando ele me olhava fixamente nos olhos. Era muito bom, mas doía. Por que eu sentia tal dor?
Um dia, quando estávamos fazendo amor, ele me olhou nos olhos fixamente e disse que me amava. Uma pontada forte surgiu no meu peito, meus olhos se encheram de lágrimas e de repente eu sabia a resposta. Uma reviravolta se fez na minha mente em um segundo, e tudo fez sentido para mim.
Lembrei de uma vivência que tive, anos antes de conhecê-lo, que me trouxe a lembrança de vidas antigas.
Naquele dia, enquanto eu respirava e tentava esquecer meu corpo para sentir meu espírito, eu senti que flutuava, que estava em dois lugares ao mesmo tempo. Uma música com melodia árabe ficava cada vez mais forte, e sem dar tempo para entendimento algum, minha mente me arrebatou.
Era só areia e céu, mais nada. Eu estava na garupa de um cavalo branco, em pleno deserto escaldante, com um homem à minha frente, que conduzia o animal. Eu podia sentir meu corpo chacoalhar ritmado com as passadas do cavalo, e o roçar do corpo do homem que o conduzia, de quem eu parecia sentir uma enorme aversão. Estávamos em caravana, cerca de vinte cavalos, mas não era muito importante para mim o destino que buscávamos.
Percebi nitidamente que eu era escrava, não podia escolher o meu destino. Estava presa àqueles homens que desprezavam e sentia minha vida repugnante e vazia. Uma enorme amargura permeava minha alma, mas o sentimento que realmente tomava conta do meu ser era uma dura e descomunal raiva. Meu ódio era tão grande que senti que poderia matar todos aqueles homens com minhas próprias mãos se tivesse oportunidade. Mas parecia que minha rebeldia os divertia ainda mais.
Os homens cavalgavam falando alto e rindo, enquanto eu, em silêncio, fechava meus olhos e apertava o pingente que carregava no cordão do meu pescoço. No fundo da minha alma eu pedia fervorosamente que alguma coisa acontecesse como um milagre, e me tirasse dali.
Talvez aquele fosse o meu dia de sorte. De repente o horizonte mudou, e uma tempestade de areia chegou sem aviso algum, surpreendendo animais e homens. Os cavalos se assustaram, e a marcha não pôde ser controlada pelos homens irritados. A areia levantava do chão, parecia vir de todos os lados,e logo nada mais podia ser visto.
Uma emoção forte tomou conta de mim. Era o meu momento! Eram os deuses do vento atendendo minhas súplicas, finalmente! Em segundos, agradeci aos céus e pulei do cavalo, escapando do homem que me segurava. Contei com a confusão que se fazia, todos gritavam tentando segurar as cargas, e esbarravam uns nos outros sem saber o que fazer ou para onde ir. E eu comecei a correr.
Eu corria muito, muito rápido, sempre na mesma direção, sem soltar meu amuleto contra o peito. Algo me guiava e eu sabia que precisava ir o mais longe possível de tudo aquilo.
Não sei quanto tempo consegui correr sem parar, sem olhar para trás. A tempestade estava longe, eu já nem sentia mais o vento, mas eu não ousava olhar um segundo para trás. Segui adiante.
O sol forte foi enfraquecendo seu brilho, e depois começou a se pôr. Eu continuei correndo o quanto pude. A única coisa que me movia era fugir, fugir, e nunca mais parar de fugir. Exausta, andei por várias horas, rastejei alguns metros, e finalmente, caí, sem sentidos, com a visão do fim da tarde à minha frente.
Não sei quanto tempo passei desacordada. Lembro de ouvir alguns passos de cavalo perto de mim e tentar me levantar. Mas meu corpo não respondia, estava paralisado e tomado por muita dor.
Com muito esforço, abri um pouco os olhos ao mesmo tempo que fechava a alma. Já imaginava aqueles homens horríveis na minha frente e um verdadeiro desespero cresceu em mim. Dei-me por vencida, e a única coisa em que pensava era que a morte me parecia uma bênção naquele momento.
Foi quando o vi. Ele vestia uma túnica negra e um tecido da mesma cor cobria todo o seu rosto, menos os olhos. Belos e profundos olhos esverdeados...
Aqueles olhos me trouxeram uma paz sem explicação e eu não pude ter reação alguma enquanto ele me carregava e me colocava sobre seu cavalo. Acho que me entreguei meu corpo ao cansaço, enquanto sentia o belo homem atrás de mim.
Chegamos a uma pequena tenda erguida no meio do nada. Não podia ver mais ninguém além de nós no lugar. Rastejei no chão, arredia, fugindo do seu alcance. Ele me ofereceu água e algumas frutas, sem pronunciar palavra alguma.Desconfiada, esperei que ele colocasse tudo no chão e depois se afastasse, me permitindo pegar a comida com a uma distância que me deixasse segura.
Ele sentou no chão, no canto oposto da tenda e ficou me olhando comer, em silêncio, com os olhos fixos em mim. Tentei ficar alerta, mas, muito cansada, caí em um sono profundo depois de comer.
Quando acordei, ele estava de pé, me olhando. Chegou perto de mim bem devagarinho, com cuidado, espantando aos poucos minha rebeldia.
Eu não sei explicar ao certo como aconteceu, mas o que se seguiu foi um belo encontro de duas almas através do calor de seus corpos. Olhando nos olhos dele, todo o meu medo se foi. Eu senti cada carinho, cada gesto, cada toque, como um bálsamo para minhas feridas abertas, tanto no corpo, como no coração. Senti o olhar dele gravado na minha alma e tive certeza de que nunca mais esqueceria aquele olhar...
Fizemos amor várias vezes, eu parecia sonhar, até que nossos corpos cansados adormeceram um ao lado do outro.
Acordei refeita, na plenitude do milagre que o amor pode trazer. Contemplei o belo homem, adormecido ainda, no chão. Eu sentia uma imensa alegria dentro de mim. Era como se toda a minha vida tivesse, finalmente, um sentido.
Eu não sentia mais raiva. Eu não sentia mais tristeza. Eu não desejava mais morrer. Eu havia acabado de conhecer um sentimento maior e mais poderoso do que o ódio que desde sempre tomara conta de mim e guiara a minha vida até então.
Saí da tenda até um pequeno barril de água que ficava no lado de fora, e fui lavar meu rosto, agradecendo aos Deuses dos ventos que haviam me guiado até minha salvação. Eu apenas havia pedido liberdade, e fui abençoada com algo mil vezes mais valioso.
Estava tão absorta, de olhos fechados, entregue às minhas orações, que nem o percebi. O homem corpulento saiu de trás da tenda, ainda montado em seu cavalo, e me agarrou, segurando violentamente os meus cabelos. Nem consegui gritar. Apenas senti uma dor aguda vinda das minhas costas, onde um punhal foi enfiado sem piedade alguma.
Ele ria ruidosamente quando olhou para os olhos desesperados do homem que saía surpreso da tenda.
Resisti à dor, o mais que pude, para olhá-lo novamente, enquanto meu corpo caía, desfalecido. Ele correu até mim, desesperado, enquanto o homem nem ao menos olhou para trás e saiu a galope, com o ar de dever cumprido.
Eu senti meu corpo enfraquecendo rapidamente, e vi tudo escurecer. Lembro que logo após a escuridão vi o mesmo corpo, ao meu lado, já não mais guardando a minha alma. Observei o belo homem carregá-lo para dentro da tenda sem dizer uma só palavra.
Meu espírito doía intensamente, e eu chorava muito. Minha alma recém saída da vida estava muito desesperada, gritando dentro de sua enorme dor.
Por quê? Por que não me deixaram morrer antes de tudo o que acabara de viver, quando a morte era o que eu mais queria? Por que me deixaram vê-lo, senti-lo, para depois partir? Agora, partir doía imensamente. Antes, seria minha maior alegria. A dor era tanta, que a visão foi se perdendo da minha mente.
Minha consciência se voltou para dentro de si mesma, recobrando meus sentidos. Respirava ofegante para conter a dor no meu peito, enquanto tentava me equilibrar.
Voltando da visão, senti como meu espírito havia se revoltado muito com aquela morte. De alguma forma eu sabia que ele demorara muito para aceitar o que eu naturalmente havia entendido ali, naquela vivência tão nítida.
Não foi um castigo. Aquele homem havia me salvado. Não da tempestade, mas de mim mesma. Se a morte que eu tanto desejava me acometesse antes de conhecê-lo, tudo o que minha alma carregaria seria ódio e revolta quando partisse. Mas não foi assim que aconteceu.
Naquele pequeno, lindo e verdadeiro momento, meu belo homem plantou dentro da minha alma, horas antes de minha passagem, um eterno e profundo sentimento de amor. Por causa deste amor, novas portas puderam se abrir. Por causa deste amor, minha vida espiritual tomara outro sentido depois da minha partida. Foi uma bênção que mereci, e não um castigo como me pareceu naquele momento tão duro.
Voltei da visão com uma dor profunda no peito. Acho que assustei minhas amigas de meditação, pois todas olhavam espantadas para meus olhos vermelhos e inchados. Eu havia chorado durante quase todo o tempo, realmente.
Foi tudo muito forte, e guardei para sempre comigo. Nunca mais me esqueci dos olhos daquele homem.
Agora, muito tempo depois, ali estava eu, escutando uma declaração de amor do homem me amava. E em um relance apenas, reconheci seu olhar. Eu olhava para aquele mesmo olhar. Agora, ali estava eu, fazendo amor com o mesmo homem cuja alma me trouxe uma pequena, mas tão importante dose de amor em um passado tão distante.
Ele me dizia que me amava e me olhava, sem entender meus minutos de silêncio, alheio ao turbilhão que se passava dentro de mim.
Finalmente abri os olhos, e olhei nos olhos dele, mas não consegui responder sua declaração de amor. Era muito forte o que eu sentia diante daquele olhar. Se antes eu já o amava profundamente, agora ele me parecia mágico, encantado, quase irreal.
Eu entendi porque sentia tanto medo de perdê-lo e porque seu olhar me falava tão fundo à alma. Porque meu medo surgia exatamente nos momentos em que ele me fazia mais feliz, e porque eu sempre sentia que o mundo poderia ruir a qualquer sentimento de prazer e alegria.

Pensei que, se a cada dia ainda busco uma parte de mim, se ainda me pergunto se faço tudo o que me comprometi a fazer nesta vida,  se ainda não sei a causa de todas as dores, se não sei o que me faz repetir alguns padrões de erro, vida após vida, acumulando problemas a resolver e a consertar, se não sei o que será de mim amanhã, hoje eu sabia a verdade mais valiosa que poderia pousar na minha alma.
Naquele momento eu tive a maior certeza do mundo de que existe mesmo uma mágica por trás disto tudo que vivemos, administrando as dores, as culpas, os medos, as certezas e as dúvidas. Uma mágica que não permite que se cometa apenas os mesmos erros, mas que também faz os momentos mais belos da nossa existência se repetirem, se atraírem, iluminando todo o resto.
O que poderia mais fazer naquela iluminada noite? Suspirei profundamente, soltando amor e gratidão com o ar que respirava. Deitei minha cabeça no peito forte do meu amor, e muito, muito feliz, fechei meus olhos.
E agradeci em silêncio àquela bela mágica que, depois de tanta dor e desilusão, permitiu que eu tivesse o calor daquele momento, a paz no meu coração, e os meus belos olhos verdes, finalmente, de volta para mim.
Pura roda da vida.

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