Meu corpo doía de uma forma contraditória e estranha. Apenas
o lado esquerdo. Cada articulação, cada tendão. Todos do lado esquerdo.
Esquerdo. Lado do inconsciente, do feminino, do passado, da
sombra. Lado da Lua. O escuro de mim.
Doía intensamente, e eu preciso admitir que sentia um
conforto estranho naquela dor. A dor me protegia. A dor me estagnava, me
debilitava, me truncava, sedava, me impedia. E parecia bom.
A mulher anciã que estava comigo dava uma risada que beirava
o sarcasmo. Seus cabelos totalmente prateados, a pele enrugada, o vestido
esvoaçante e o olhar desafiador. Era a bruxa da velhice, aquela que não se
engana, que não precisa mais fazer tipo ou agradar a ninguém. A mulher da
verdade: crescemos, envelhecemos, erramos, sentimos e causamos dor, morremos, e
– apesar do que se pensa – continuamos exatamente do mesmo ponto que paramos.
Nada de mágica. Trabalho duro e real, limpeza profunda e superação.
“Todos tem um lado feio.” Ela diz isso com um sorriso
desafiador e verdadeiro. Sem dúvida. Eu preciso ver o meu.
“Libertar o que se esconde é o único caminho da
felicidade...”
Eu escondo medo. Sei pelas minhas articulações que doem,
pelos meus rins e bexiga que vivem sofrendo. Sei pela minha atitude dura e
inflexível diante das situações que me assustam. Eu nunca corri. Eu enfrento. E
para enfrentar, endureço tudo o que posso. É preciso não desmoronar. Muitos
precisam de mim. Muitos. Mesmo.
Mas agora, diante da bruxa da Vida e da Morte, diante da
verdade interna, sem platéia, sem máscaras, eu sinto o medo. Fragilidade até
irritante, de tanto que paralisa. Congelo.
“Você precisa deixar ir!” Ela insiste. Eu hesito.
Deixar ir? Parecia totalmente improvável. Diante de uma
lógica absurda me parecia óbvio que aquele medo me protegia. Ele me afastava de
repetições fracassadas. Eu precisava dele.
Mas meu outro lado – o iluminado, o da sacerdotisa vívida –
dizia que era ilusão. Que o medo era o responsável por todos os meus equívocos,
e por cada fracasso real. Dureza esta coisa de dúvida...
Fazia poucos dias que eu havia tomado consciência disso. Eu
achava que estava cansada, exausta, e precisava relaxar. Tentei de todos os
modos que conheço, de cada plano de consciência, alcançar tal relaxamento, ou
descanso, sem sucesso algum. Meu estoque de criatividade e sabedoria havia se
esgotado. E eu ainda me sentia cansada.
Foi aí que a bruxa me encontrou. Foi aí que ela me olhou com
seus olhos sarcásticos de sempre que dizem “Você engana a si mesma, mas a mim
não...”. Através dos olhos dela, olhei espantada o medo instalado em meus
corpos sutis... Eu tinha medo... Ainda tinha medo... Mas não acaba nunca???
Ela me levou ao topo de um vulcão em erupção, e eu olhei o
poder da Mãe ali, revirando a terra, consumindo o ar, evaporando a água, no seu
coração de fogo... Lugar de transformar. Sem dó. Momento de silencio e introspecção.
Ela respeitou.
O medo havia se misturado às águas do meu corpo
camufladamente, dissimulado como sempre, não se deixando perceber facilmente. Havia
bagunçado minhas funções de limpeza, de troca de energia, e acumulado líquidos
indesejáveis por todo o corpo. Mas agora eu podia ver... Não era raiva, nem
mágoa, nem tristeza. Puro medo de sofrer novamente. Puro medo de perder o que
conquistei. Puro medo.
Nada a perdoar. Nada a esquecer. Eu apenas guardava tudo
aquilo como lembrança atenta de algo que não queria repetir. Mas me envenenava.
“Liberte!”
Não conseguia. Eu percebi decepcionada que ainda estava
amarrada a ele.
“Para que acredita que ele serve?”
Apesar de idiota, minha lógica era clara. Enquanto eu
tivesse medo, eu sabia exatamente como me afastar de pessoas e situações que me
causavam dor. Enquanto eu não esquecesse o quanto me fizeram sofrer, eu não
sofreria novamente. Enquanto eu guardasse cada atitude que me causou dor, eu
poderia justificar minhas atitudes e reações sem culpa na minha defesa.
Eu estava embolada em uma roda sem fim, e isso me assustou. Eu
não tinha raiva. Eu apenas queria não sofrer mais. Só isso. Queria minha vida
apenas para mim, não ser invadida, sugada, desrespeitada, usada, manipulada,
coagida, e sentir a dor desta falta de limite. Mas isso me endurecia. E me
causava outra dor... Troca burra.
Fisicamente, eu travava meu maxilar, e meu lado esquerdo
doía. Ombro, cotovelo, pulso, joelho e tornozelo. Apenas meu quadril se
salvava. Achei isso importante, mesmo sem entender ainda.
Concentrei meu pensamento no alto do vulcão. Contemplei a
energia poderosa da Mãe e me senti pequena, minúscula, diante dela. Foi bom.
Bom se sentir minúscula às vezes. Gente minúscula não precisa estar a serviço
de ninguém...
Percebendo minha angustia, a bruxa se compadeceu. “Precisamos
limpar sua mente primeiro. Ela que acredita em bobagens. Depois que curá-la,
poderá libertar sua alma, seu coração, sem problemas... Seu coração é bom
demais. Puro demais. É sua força. Mas você ainda acredita no contrário. Não é a
bondade que te faz sofrer. São as regras...”
Valores. Regras. Sempre as benditas verdades mentais.
Qual o valor que me acorrenta desta vez?
Dizer não a alguém. Deixar que o sofrimento seja vivido sem
intervir. Permitir que todos vivam a roda da vida que geram e recebam suas
colheitas reais. Não fazer nada a respeito. Isso me parece certo. Não penso o
contrário... então, o que pode ser?
“...continue...”
Continuei...
Lidar com o retorno disso. Lidar com as decepções das
pessoas diante da minha postura. Lidar com o fato que não concordam e me julgam
individualista, egoísta, dura ou insensível.
Uma faca atravessou meu peito. Comecei a chorar. Não, eu
ainda não podia lidar com isso.
Eu acredito em justiça. Eu sei que precisamos merecer o que plantamos
e queremos colher. Eu sei que temos que cativar para ter. Eu sei que ninguém é
obrigação de ninguém. Eu sei que tenho o direito de ser feliz e fazer minhas
escolhas e de não participar de dramas e jogos que não acredito.
“Mas para isso deve entender que há conseqüências desta
postura nova. Você se liberta, ganha pedaços seus de volta, cresce, renasce em
poder e tranqüilidade. Desperta em amor próprio. Mas, cada um que perde os
pedaços que você recuperou, sente dor. Não podem ainda ver e se sentem lesados.
Culpam e julgam. Isso é inevitável.”
Senti uma dor fininha e profunda. Não há como ser totalmente
feliz. Aqui neste mundo a felicidade é conquistada no tapa, na raça, mesmo que
traga alegria e leveza. Temos que desbravar nossa liberdade, escancarar nossas
escolhas, defendê-las com atitude e certeza. Nem todos vão concordar.
Dependendo da história e de quanto nos espalhamos pelos que amamos, muitos não
irão concordar.
Mas senti um instante de sabedoria. Todos que não concordam
são exatamente aqueles que não se importam com a minha alegria. São aqueles que
priorizam seus próprios sentimentos. Eles são auto-focados demais para
participar.
“Que fiquem em seus mundos então...”
Era exatamente isso. Mundos diferentes, como tantas e tantas
mensagens nos disseram e hoje é apenas verdade a ser vivida. Multidimensionalidade.
No mundo que escolhi, sou responsável por mim e pela minha
felicidade. Não posso esperar que me ajudem ou facilitem para mim. Cada um faz
o que quer e colhe seus frutos. E planta de novo. Roda da Vida.
No mundo que escolhi, vejo todos como iguais em poder e
merecimento. Ninguém é melhor ou pior que ninguém. Inclusive eu mesma.
No mundo que escolhi, as regras são as mesmas para todos e
espero e exijo para mim exatamente o que dou aos outros. Ordem e justiça
plenas.
No mundo que escolhi, Amor é uma estrada de duas vias, não
necessariamente iguais em tipo ou tamanho, mas em entrega e valor. Amor é
doação recíproca e livre. Nada fora disso vale.
E no mundo que escolhi tudo gira em torno do Amor. Todo
sentimento falso que etiquetam como “amor” para fins aleatórios, não me diz
respeito. É só.
Eu não preciso mais dos meus medos. Eu posso liberá-los em
Paz. Posso entregá-los a um passado necessário para meu crescimento e iluminação.
Não tenho medo de justiça alguma, e isso me faz muito bem. Meu medo da reação
das pessoas era meu último degrau de carência afetiva e dependência.
A verdade é que não vou agradar a todos. A verdade é que vou
ver pessoas a quem me dediquei profundamente me julgando e condenando, enquanto
nem se atrevem a olhar nos meus olhos para
perguntar como me sinto. Elas foram minha prisão. E minha caminhada ao
crescimento. Tenho gratidão por elas. E me liberto.
Entrego ao vulcão da Mãe cada pessoa, devagar, uma a uma.
Entrego as dores que senti, as alegrias, as decepções, as tristezas. Não
importa agora o que elas sentem. Sou grata e levanto vôo novamente em direção ao meu querido oceano...o mar de mistério e possibilidades.
Há um mundo inteiro lá fora a ser desvendado. Um mundo de
justiça, de reciprocidade, de carinho e amor verdadeiros. Há pessoas com
vontade de se conhecer e de ajudar, de trocar e cooperar, de viver em parceria
e alegria. São minhas irmãs.
Todos os outros mundos não são mais meus. Não desejo nada a
eles, apenas luz. Estou partindo e serei apenas uma lembrança dentro deles. Que
sejam o que necessitam ser, assim como assumo minhas escolhas. É tudo apenas
vida. Pura Roda da Vida.
E aos poucos terei noção deste novo chegando.... e não
estarei só. Nunca mais.
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