segunda-feira, 18 de junho de 2012

Morgana

Eu me perguntei onde estaria Morgana. Onde estaria a Senhora das Brumas, a mulher amaldiçoada por vibrar, mesmo sem querer, tudo o que se tem medo de acreditar?
Morgana, a senhora das fadas, a senhora das feiticeiras. Eu sempre preferi sacerdotisa. A Grande Sacerdotisa do oculto negado à humanidade.
Sua aura vibrava a iluminação do amor romântico, o poder da intuição, a elevação das emoções, a sacralidade dos corpos que se envolvem em sintonia com o coração. Isso é magia, então? Perigoso, mau, subversivo? Ou apenas uma forma de dizer que tudo o que mais se teme não é mais que natureza em movimento e alegria, fora do controle da razão?
Desejo? Paixão? Abundância? Dança? Alegria? Beleza? Tudo o que simplesmente se chamou de "prazer da carne", como se isso fosse ruim. E que seria da alma sem o corpo, seu abençoado invólucro de matéria?
Onde estaria Morgana, nestes dias malucos, onde todos são colocados à prova de suas maiores emoções e medos, onde finalmente se percebe que apenas a mente não pode satisfazer o ser humano? Onde estaria sua sabedoria, onde pousaria sua Luz e clareza, o que ela diria para mim?
Minha última memória de Morgana foi há muito, muito tempo atrás. Se perde na memória dos séculos.

Em um campo de batalha. Caminhávamos todas juntas  - mais velhas e mais novas – entre os corpos dos guerreiros caídos em combate, numa guerra entre irmãos que nunca mais teve fim na nossa terra sagrada. Não existiam mais feridos, já tinham sido todos levados, como sempre. Somente ficavam os mortos, para que nós os levássemos.
Éramos cerca de doze, mas uma era inconfundível e fortemente notável. Morgana caminhava entre os guerreiros no auge de seus longos anos de vida, com a postura impassível de Sacerdotisa Maior.
Eu a olhava com admiração misturada à mais sincera compaixão. Como podia ela estar ali, realizando seu dever como tantas antes de nós, e ao mesmo tempo carregando a missão de levar seu irmão e seu filho querido de uma só vez?
Eu pensava que nada deveria ser daquela forma. Para mim, parecia que Arthur não tinha sido digno. Tinha questionado os valores de sua infância e se aliado aos cristãos inescrupulosos. Arthur tinha permitido a guerra e tínhamos perdido Modred – aquele que seria a nossa redenção.
- Todos merecem ser levados como guerreiros da luz, minha irmã. Não julguemos o que não podemos compreender.
Morgana sempre tinha feito isso, desde menina. Ela sempre lia meus pensamentos e os complementava com algum ensinamento que muitas vezes eu não queria ouvir. Ela fazia isso com todas nós.
Olhando o corpo inerte de Arthur, eu pensei em Guinevere. Estava só agora, sem seu senhor. Lembrava dela há tantos anos atrás, bela e altiva, a escolhida pelo Senhor Ungido.
Morgana nunca foi amiga dela, nem a estimou, mas disse que a escolhida precisava conhecer os mistérios antigos para compartilhar a vida de Arthur. Então me escolheu para acompanhá-la.
Fui sua mentora por anos a fio, celebrando a deusa dentro dela a cada solstício e equinócio, emitindo os sons sagrados da cura. Até a grande ruptura.
Em algum momento, Arthur começou a questionar tudo, a buscar outras idéias. Pouco a pouco os cristãos e suas idéias ambiciosas chegaram ao coração do rei e ele se transformou..
De repente os antigos rituais não eram mais respeitados, as sacerdotisas não eram mais consultadas, a força da Deusa não era mais cultuada. Um Deus único e solteiro se impôs entre os seguidores de Arthur, e sinceramente eu não sei dizer como aconteceu.
Uma noite, ele me expulsou. Disse que voltasse à floresta, às bruxas de sua irmã, que não era mais bem-vinda ali. Eu fui.
Nitidamente, lembro da minha capa escura, do meu capuz que cobria meus longos cabelos, e meus olhos avistando os de Guinevere, ao longe, em alguma janela do castelo. Eu sabia que era ela. Eu sabia que ela cumpria seu dever – as senhoras políticas nunca abandonavam seus senhores. A intenção de suas vidas era honrá-los e suportá-los, em todos os momentos e decisões – e ela honrou.
As Sacerdotisas não eram como as Senhoras políticas. Elas eram livres e fortes, senhoras do seu destino. Tinham acesso às doutrinas de cura e prosperidade, andavam através do tempo para aprender os mistérios. Mas não tinham família. Era o preço a pagar por tanta independência no mundo dos homens.
Seus filhos sagrados eram concebidos em rituais de união entre as sacerdotisas e os escolhidos, com o mais puro amor que seus corações podiam irradiar. Eles recebiam toda a energia do legado do Amor e da Consciência Maior, mas não eram deuses, eram humanos, e precisavam galgar por si só, o longo caminho da sabedoria por todos os seus dias e noites de vida, muitas vezes longe dos seus pais.
Os últimos anos haviam sido perturbadores, entretanto. Os escolhidos questionavam seus postos, procuravam idéias novas e muitos esqueceram de suas missões.
Em um mundo em colapso, Arthur foi esperado como nenhum outro. Vindo das duas vertentes do sangue sagrado, ele cumpriria a tarefa de reorganizar a Grande família e trazer novamente a fé para dentro dos corações perturbados por tudo que parecia ruir ao nosso redor.
Como era o costume, para que a linhagem seguisse seu curso, o Ungido participou do Grande ritual com a Sacerdotisa Maior e Modred foi concebido. Mas nada disso afastou as profecias escuras.
Eu sei que Guinevere aprendeu a respeitar todos estes ensinamentos e a nossa amizade. Eu sei que ela sofreu com tudo que presenciou. Mas ela ficou.
Quando voltei, Morgana ficou furiosa. Disse que renegava Arthur e tudo que viria com suas ações. Entregou Modred para que os druidas o educassem e jurou que nunca mais ele veria o pai.
Depois disso, tudo o que aconteceu foi desgraça. Todo o reino foi invadido e desrespeitado pelas idéias daqueles que eram contra a Deusa e o Deus. Modred defendeu o Sagrado de sua gente e morreu no mesmo campo de batalha onde seu pai caiu por ter questionado de alguma forma o mesmo sagrado.
Mesmo sabendo que tudo é como deve ser, podia sentir que Morgana sofria. Eu não posso ler pensamentos como ela, mas meu dom sempre foi ler corações. Ela sofria muito.
Todas nós envolvemos os guerreiros nos tecidos sagrados, um a um, entoando os mantras de abertura dos portais das brumas.
- Eu sei que não entende; às vezes, eu também não. Mas tudo foi como deveria, não vê? Tentamos guardar o sangue sagrado a todo custo, mas a Grande Família se extingue aqui.
- Como será agora, Senhora? É o fim da grande descendência. Como os escolhidos saberão quem são, se não forem mais concebidos dentro do ritual sagrado da união do deus e da deusa e não tiverem o sangue sagrado vibrando nas suas veias? Quem poderá levar adiante o que foi ofertado e guardado dentro de tantas moradas, por tantos anos, e defendido com tantas vidas, se não se sabe quem é ao nascer?
- O Universo é mágico, minha irmã. – Morgana tinha um estranho e vibrante olhar neste momento. – De alguma forma, os escolhidos continuarão nascendo. Aqui, ou distante de nós. Senão pelo sangue, se reconhecerão pela alma, que é imortal. Esta é a que importa. Deveríamos ter visto isso antes – todo o esforço em preservar o sangue sagrado foi em vão. Estávamos erradas. A ordem da linhagem é maior do que podemos perceber e controlar, está acima de nossas ações e se estende por véus que ainda não dominamos. A Deusa pode esperar pacientemente, mas nunca abandonará seus amados filhos e filhas.
Ela então se calou. Para sempre naquela vida.
Eu não pude entender muito bem. Para mim parecia impossível reconhecer os Ungidos se a linhagem de sangue não fosse mais respeitada e continuada. Morgana parecia estar ouvindo coisas que eu não podia compreender.
Fomos todas nós, juntas, floresta adentro, para o ritual de passagem. Todos os guerreiros foram levados, todos que eram sagrados de nascimento, não importava suas escolhas ou erros – assim como ordenara nossa Senhora.
Foi a última vez que qualquer humano pode nos ver. Morgana disse que ali se acabava uma era, e outras se iniciariam. Ela se isolou na floresta para sempre, enterrando consigo o resto daquela história. Fomos todas com ela, como juramos, até o final.


Até hoje vejo a floresta envolta em uma névoa fria e profunda. Muitas pessoas tem dificuldade de enxergar ou respirar perto dali. Isso nos deu o que precisamos, por muito tempo: silêncio e solidão. 
Silêncio e solidão. Estas palavras me soam ainda tão profundas, tão pessoais e tão verdadeiras!
Hoje me pergunto onde estaria Morgana, agora, quando posso compreender muito bem as suas palavras.
Hoje, quando todos os segredos estão sendo revelados, quando a grande Igreja perde aos poucos o domínio sobre a verdade. 
Não precisamos de Linhagens sagradas, nem de famílias reais. Tudo o que é relacionado ao poder foi deturpado e é muito difícil cumprir missões sagradas com sangue real. O que antes era o passaporte para o respeito e reconhecimento, hoje significa perigo e desconfiança. Todos os seres reais são visados, muitos nem ao menos conseguiram viver o suficiente para cumprir parte de suas missões.
Com certeza, os ungidos não nasceram mais dentro das linhagens reais, salvo talvez pouquíssimas exceções. Eles nasceram com outro sangue, com outras idéias, outras roupagens, em situações que permitissem liberdade de idéias e de ações. Foram talvez poetas, escritores, cientistas, filósofos, pensadores – ou até religiosos. Quem sabe o que são hoje? A pessoa ao nosso lado na fila do banco?
Fazer parte desta história muitas vezes não é nada romântico ou lírico. É triste, duro e forte demais para cada alma presente. A tristeza e o fracasso plantados naqueles dias levaram muito tempo para serem lavados de cada espírito envolvido. E todos decidiram promover, séculos depois, o resgate do sagrado. 

 A história do Graal não morava ali, na linhagem sagrada. Algo mais importante vem a tona nestes dias que virão, eu sinto, e por isso me pergunto onde estaria Morgana hoje.


"Dentro de você... Estou dentro de você. Minha força é sua força, minha certeza é sua certeza. Algo maravilhoso está nascendo e todas nós poderemos enfim sair das brumas. Nunca pertencemos a elas. Elas apenas nos protegeram na época do medo. Na verdade somos luz, calor e alegria. Temos o direito à beleza da vida e a manifestar a nossa sabedoria sem culpa. Busque o amor como busca o ar que respira. Acorde seu corpo com a mesma força com que buscam poder neste mundo dos homens. Ele é sagrado. Vibre, acredite, se exponha, fale, ouse. É o momento do avesso. Quem muito falou irá se calar. E finalmente o silêncio da mente terá seu valor na música da alma. E nossas palavras serão ouvidas. Eu estou aqui. Não me deixe esperar muito para respirar novamente..."
É muito bom tê-la de volta -  pensei calmamente. Seja bem-vinda, então, minha velha irmã.

Um comentário:

  1. Muito interessante essa sua estoria. Espero que as pessoas possam re-lembrar Arthur, the warriors, and of course Morgana para entender bem a mensagem. Realmente e a hora do avesso, da soltura e da libertacao com todas as alegrias e riscos que trazem. (waldete)

    ResponderExcluir